Durante décadas, os grandes fornecedores levaram enorme vantagem sobre as redes varejistas locais nas negociações.

Com estratégias de vendas ancoradas em bases de dados, práticas e técnicas sofisticadas, provenientes em boa parte das melhores escolas e centros de estudo de administração, eles deitavam e rolavam nas discussões de preços com seus despreparados compradores.

Estes, frequentemente, ficavam mais do que satisfeitos com descontos generosos em alguns produtos, sem desconfiar que tal “camaradagem” só se aplicava a itens de menor importância para os seus abastecedores.

Essa realidade só começou a mudar em janeiro de 2001, quando um grupo de altos executivos do Grupo Pão de Açúcar (GPA) e consultores da McKinsey passou a desenvolver um trabalho que se tornaria conhecido como Projeto Águia.

A proposta era criar ferramentas e métodos para auxiliar a gestão de categorias de produtos e, a seguir, capacitar a equipe de compras para melhor negociar com os fornecedores.

Uma das primeiras tarefas foi a análise e o cruzamento de dados de mais de 30 milhões de tíquetes de compras, que deu origem a cerca de 80 dossiês de grandes indústrias.

Descobriu-se, por exemplo, que a Procter & Gamble detinha uma participação nas vendas de produtos de higiene do GPA de 25%, 13 pontos percentuais acima da sua média de mercado.

O passo mais importante foi a criação do Índice de Desempenho do Comprador, o IDC.

Em sua apuração, eram contabilizados custo, bonificações (descontos concedidos pelos vendedores), market share dos produtos nas lojas da rede e no mercado etc.

Quanto mais elevado fosse o IDC, maior era a margem de barganha e, claro, a cobrança sobre os profissionais da área de compras.

Essa turma, aliás, se sentiu orgulhosa e valorizada ao ser apresentada aos novos instrumentos e a técnicas de negociação desenvolvidas na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e no Institut Européen d’Administration des Affaires (Insead), de Paris.

Acharam até graça no bordão utilizado na campanha interna de divulgação do programa: “Você quer ser uma águia ou uma galinha?”.

O Projeto Águia só recebeu os últimos retoques no começo de 2002, mas executou voos rasantes bem antes disso.

A regra era clara: os fornecedores que não cedessem nas negociações sofreriam retaliações, ou seja, teriam seus produtos substituídos por itens de indústrias menos badaladas.

Por volta de junho de 2001, surgiu a primeira oportunidade de uma “ação corretiva”, por assim dizer.

Sob o comando de Ivan Fábio Zurita, que acabara de assumir a presidência da operação local, a Nestlé apresentou ao GPA uma nova tabela, com preços majorados, e não quis nem saber de conversa.

Era pegar ou largar. O bicho, ou melhor, a ave de rapina é que ia pegar.

Os executivos envolvidos com o Projeto Águia propuseram ao então controlador da rede, Abilio Diniz, que a multinacional suíça fosse colocada de “quarentena”, até que adquirisse mais jogo de cintura e bons modos.

Para reforçar seu argumento, apresentaram-lhe uma estimativa das perdas que seriam causadas à empresa pelo “gancho” – algo em torno de 5% das suas vendas no país.

Destacaram, ainda, que o momento era mais do que propício para endurecer o jogo, pois a fabricante do leite Ninho teria de apresentar, em breve, indicadores de performance à matriz europeia. Receberam sinal verde de Abilio.

O veto abrangeu cerca de 600 de um leque total de 700 artigos. No lugar do tradicional Leite Moça, por exemplo, ganhou destaque nas gôndolas o leite condensado Mococa.

O GPA tratou, claro, de informar os consumidores sobre as razões do repentino e inesperado sumiço de vários dos campeões da sua preferência.

A primeira edição da campanha “Diga não a este produto”, lançada nas lojas, explicava tudo e relacionava, um por um, os itens que o fornecedor pretendia reajustar sem dar nenhuma satisfação.

Zurita jogou a toalha dois meses depois, não sem antes ter sido obrigado a comparecer ao QG do seu grupo, em Vevey, na Suíça, para explicar as razões do tombo sofrido pela subsidiária brasileira.

A Nestlé calçou as sandálias da humildade e não só suspendeu o aumento como ofereceu um desconto de 5% sobre a tabela antes vigente.

Algumas semanas mais tarde, Zurita visitou a sede do GPA, para fumar o cachimbo da paz.

A bem-sucedida queda de braço com um fornecedor peso-pesado repercutiu em todo o mercado.

O episódio, diga-se, foi apenas o primeiro de uma série.

Volta e meia, o Grupo Pão de Açúcar reeditava a campanha “Diga não a este produto”, recomendando ao público, por meio de cartazes nos pontos de venda, que optasse por uma mercadoria similar.

Outro grande alvo dessa ofensiva foi uma famosa fabricante europeia de cosméticos, em confronto que chegou ao conhecimento do CEO global do grupo.

Na sequência, outras redes tomaram coragem e passaram também a endurecer as negociações com grandes indústrias.

Surpresos, alguns dirigentes da manufatura nacional começaram a reclamar de uma suposta “ditadura do varejo”.

A chiadeira refletia, sobretudo, a constatação de que a ingenuidade e o despreparo do comércio no trato cotidiano com os seus fornecedores eram páginas definitivamente viradas na história.

Dario Palhares, jornalista e escritor, especial para o varejoemdia.

Escrito por varejoemdia

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